O tempo não para.
Mas algumas paixões o tempo não consegue apagar — ao contrário, ele as fortalece, as molda, as passa adiante como se fossem heranças de sangue, suor e lágrimas. E na minha família, a herança tem cor: vermelho e preto. Não é só paixão, é identidade. É fé embutida nos fios da história.
Meu avô viu o Flamengo nascer. Era 1895, e ele, acompanhava os rapazes do remo, os primeiros remadores da praia do Russel. Falava com brilho nos olhos sobre aquele clube que nascia pequeno, mas com um destino gigante. Um clube que, antes de ser futebol, já era símbolo de coragem e desafio. Ele não viu Zico, o maior jogador de todos os tempos para a Nação. Mas viu o espírito nascer, e isso já o fez grande.
Meu pai carregou esse legado como quem carrega um estandarte em meio à multidão. Viveu os tempos do campeonato carioca raiz. Era daqueles que rodavam todo o estado da Guanabara, pulando de trem e lotação para ver o Mengão em Olaria, Bonsucesso, Madureira, Bangu, Campo Grande... Cada estádio, um templo. Cada jogo, um ritual. Ele esteve lá, de carne e osso, no Maracanã lotado quando fizemos 4 a 1 no América, no segundo tri, lembrando Evaristo de Macedo, Rubens, Dequinha, Píndaro e Jordão. Falava de Zizinho com reverência, como se fosse uma entidade. De Leônidas da Silva com espanto, de Dida com saudade. Contava que Yustrich , o goleiro, o Aranha, tinha na verdade braços de polvo — e talvez tivesse mesmo, pois naquela época tudo ganhava contornos mágicos na boca de um pai apaixonado. Suas histórias sempre vinham maiores do que a vida, e que bom que vinham assim. Porque memória de torcedor não é ata, é poesia.
Morreu cedo. Mas ainda em tempo de ver o Flamengo bicampeão brasileiro em 1982 e, claro, o mundo aos nossos pés em 1981. Aquele jogo contra o Liverpool foi nosso primeiro em uma televisão em cores. Lembro como se fosse hoje. Era como se os tons rubro-negros invadissem a sala e pintassem tudo ao redor. Eu, havia entendido em 1978 com aquele gol de Rondineli que que o Flamengo não era só um time, . Era um portal. Uma ponte entre o passado e o futuro. Um laço invisível entre gerações.
Continuei carregando esse nome no peito como quem carrega um sobrenome. Sofremos. E como sofremos nos anos 90 e nos anos 2000. Vimos crises, incertezas, quase quedas. Mas jamais pulamos do barco. Porque quem é Flamengo sabe: não existe fase ruim, existe espera por mais uma glória. E elas sempre vieram. Um Carioca aqui, uma Copa do Brasil ali, um Pet acertando uma falta mágica e escrevendo uma das páginas mais belas que já vi. E a chama seguiu acesa.
A quarta geração cresceu com essa chama. Meus filhos nasceram entre altos e baixos, mas com a certeza de que todo ano era ano de Flamengo. Mesmo nos momentos mais modestos, havia taça. E, acima de tudo, havia história viva. Contávamos sobre Zico como se ele fosse um parente distante, sobre Adílio como quem fala de um vizinho da infância. Falávamos de Leandro, Júnior, Júlio César, como quem apresenta heróis de verdade. Sem esquecer de mencionar figuras que foram cometas, como esquecer aqueles dois gols do enorme Bujica, o gol do Lê.
Tudo isso forjou neles um amor que não depende de resultados — amor que sobrevive à ressaca, porque aprendeu a beber da fonte.
Hoje, com quase 60, espero pelo meu primeiro neto e sorrio. A quinta geração se aproxima. Não sei quem ele vai ver em campo. Talvez um novo craque, talvez outro título mundial. Mas o que eu sei é que ele herdará esse amor. Porque o Flamengo na minha família não se escolhe, se respira.
Mas não vai faltar. O manto já está separado. O nome já está sendo cantado. E a história... essa, seguirá viva, contada com exageros, lágrimas, orgulho e risos. Como toda história rubro-negra deve ser.
Porque no fim, ser Flamengo é um modo de continuar vivo — mesmo quando já se foi.
Sim eu sei que nas nossas vidas as coisas principais não giram em torno do futebol, porém como já disse alguém, entre as coisas desimportantes da vida, nada é mais importante que o Flamengo.
"Flamengo até morrer eu sou."

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