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Estádio do Flamengo no Gasômetro.


Texto publicado no X, excelente, pelo Ricardo Hinrichsen

Especialista em gestão esportiva. Ex VP de Marketing, Flamengo. Membro do Flamengo Sem Fronteiras.

Com a aparente concretização da apresentação de um pré-projeto de estádio do Flamengo no Gasômetro, voltou com força total o debate entre as opções de partir para um novo estádio, ou permanecer no Maracanã numa concessão de longo prazo. Normalmente aqueles que defendem a segunda opção usam um argumento afetivo (a importância do estádio na história do Flamengo e todas as suas lembranças), um econômico (o custo de aquisição do terreno e construção do estádio), um político (os pretensos possíveis obstáculos impostos pelo poder público para um estádio do Clube), e um logístico (a superioridade do Maracanã, em termos de oferta de transporte, sobre outras opções). Acredito que as lembranças do passado não podem condicionar as decisões do futuro. Que o mito do Maracanã foi construído pelo Flamengo e sua torcida, não o contrário. E assim, aonde for o Flamengo um novo mito será construído. Acho também a questão política questionável. Em Belo Horizonte, o CAM, outro clube de massa de quem se dizia a mesma coisa, recentemente enfrentou os obstáculos políticos e construiu sua casa própria com direito a enfrentar o prefeito de BH ex-presidente do clube e desafeto político da atual diretoria. Em relação à questão econômica acredito que uma opinião bem embasada só pode ser construída através de um plano de negócios detalhado. Qualquer coisa diferente disso, é apenas chute. Como eu ainda não tentei fazer um estudo de viabilidade, ou tive acesso a um de terceiro, prefiro não opinar sobre esse ponto nesse momento. Muito embora, décadas de experiência em estudos de viabilidade econômica me façam crer que um estádio próprio do Flamengo não só seria economicamente viável, mas no longo prazo uma escolha econômica muito mais segura do que apostar em uma longa concessão do Maracanã, em especial nos termos do edital publicado. Mas o foco desse texto é analisar melhor especificamente a questão da logística. O Maracanã de fato tem oferta superior nesse aspecto? Se tem afinal, é a oferta abundante de transporte que cria um estádio de sucesso, ou é o estádio de sucesso que cria a oferta abundante de transporte? Um estádio pode de fato impactar e valorizar seu entorno, como? A qualidade da logística de acesso a um estádio limita-se apenas à oferta de modais de transporte, ou há outros fatores que podem influenciar? Para essa análise vou usar partes de um estudo inacabado, por falta de tempo há um ano e meio, que comecei a escrever sobre a questão do estádio do Flamengo. Há um capítulo específico exatamente sobre logística, e vou compartilhar aqui algumas questões nele abordadas. A pergunta inicial é se o Maracanã de fato tem uma oferta privilegiada de transporte, quando comparado a outros estádios. No mundo ideal essa pergunta seria respondida através de um profundo estudo comparativo de tráfego e transporte no entorno de cada estádio. Como isso não existe, ou pelo menos não tive acesso a essa informação, podemos apelar para uma pesquisa feita em agosto de 2022 pelo jornal O Globo que ranqueou os estádios mais fáceis de chegar das equipes que disputaram a primeira divisão do campeonato brasileiro daquele ano. O Maracanã foi o primeiro colocado, o que confirmaria sua condição de estádio com ótimo acesso.  


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Entretanto se hoje o Maracanã possui condição de oferta privilegiada de transporte, nem sempre foi assim. O estádio foi construído para a Copa do Mundo de 1950, ocupando um terreno onde antes funcionava o antigo Derby Club. Com sua compra pelo concorrente direto Jockey Club Brasileiro, e transferência das dependências de turfe para a Lagoa, o terreno passou a estar disponível para a venda. O Flamengo inclusive quase ficou com ele em permuta com o JCB pela Gávea (estória que já contei por aqui), antes do governo do Distrito Federal (antiga Guanabara) adquiri-lo para a construção do estádio municipal. Naquela época, a região no entorno do Maracanã estava muito longe de ser densamente povoada e com abundante oferta de transporte. O terreno era cercado por uma área residencial de baixa densidade e outros terrenos desocupados. Nada ali lembrava a região atual do entorno do estádio. Uma importante lição a aprender aqui é que a oferta de transporte no entorno é uma via de duas mãos, quando se trata de um estádio de futebol de grande utilização. Ou seja, se é verdade que melhor oferta de transporte ajuda a fazer o estádio “pegar”, também é que um estádio com grande demanda induz ao aumento na oferta de transporte no entorno.  

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Mas é certo que, ao menos de início, a localização de um estádio é um fator importante para sua viabilidade econômica. Isso é especialmente importante quando se considera a questão das receitas com assentos VIPs e patrocinadores. Ao contrário do óbvio, a experiência de assistir a um jogo de futebol começa quando o expectador deixa sua residência, e não quando chega ao estádio. Da mesma maneira só termina quando esse expectador retorna ao seu ponto original de partida. Ou seja, uma experiência sofrível de deslocamento para e do estádio impacta decisivamente na percepção da qualidade da experiência como um todo. O produto matchday começa a ser entregue na saída da casa do torcedor, e só termina também nela. Diversos cases no Brasil, e fora, mostram que uma experiência sofrível para chegar no estádio não impede a ida da grande maioria dos torcedores, o público que compõe o chamado general admissions. Entretanto, o público de perfil VIP, ou o público corporativo como clientes e parceiros convidados por patrocinadores por exemplo, são fortemente impactados pela questão do deslocamento. Isso tem o poder de dificultar bastante a venda de assentos VIP, camarotes e mesmo a venda de contratos de patrocínio para o estádio. Como essas receitas tem um peso importante em estádios modernos, tem-se aí um grande problema. Um bom exemplo pode ser encontrado em SP, onde Corinthians e Palmeiras construíram estádios novos.

Enquanto no caso da SEP o novo estádio foi construído no lugar do antigo Parque Antártica, em uma zona residencial centralizada, o estádio do SCCP foi construído em Itaquera, uma região bastante distante do centro de São Paulo. Essa diferença na localização se traduziu em uma diferença na curva de comercialização das propriedades comerciais de maior valor agregado entre os dois estádios, com o estádio do Palmeiras mostrando inicialmente uma performance comercial, para essas propriedades, muito melhor que o do Corinthians.  

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Assim é certo que não apenas a oferta de transporte, mas o tempo de deslocamento para e do estádio, afeta inicialmente sua viabilidade econômica, como ocorre com qualquer negócio. Entretanto, um estádio de futebol não é um negócio como outro qualquer. O fluxo de pessoas que o frequentam é formado por torcedores. E torcedores, por sua vez, não são apenas consumidores. Dessa forma, estádios de futebol onde jogam clubes populares não apenas são influenciados pela região onde se situam, mas também a influenciam. E essa influência não está restrita à ampliação da oferta de transporte. Nesse contexto há casos onde a influência de um estádio de futebol foi capaz de desenvolver regiões inteiras, anteriormente degradadas ou abandonadas. Um caso fartamente documentado é o do Ajax de Amsterdam, na Holanda. Quando o clube se mudou para a Amsterdam Arena em 1996, deu-se início a um notável processo de desenvolvimento da região e seu entorno, até então de baixa ocupação. Em menos de 10 anos diversas operações comerciais, de escritórios e residenciais foram inauguradas, promovendo o desenvolvimento de um novo distrito na cidade de Amsterdam com grande impacto em termos de geração de emprego e renda para a cidade.  

No caso dos estádios reconstruídos no mesmo local original ou próximo a ele, não é possível falar em indução ao desenvolvimento local, na medida em que que esse impacto pela presença do estádio já existia previamente. Isso, entretanto, não impediu que novos projetos de estádios como os do Arsenal, West Ham, Tottenham entre outros, pudessem oferecer novas contribuições para suas localidades. Esse impacto ocorreu com a utilização do equipamento fora do dia de jogo para projetos sociais do interesse da comunidade (como ocorre no Brasil no caso do Estádio da Cidadania em Volta Redonda, RJ). Ocorreu também através da construção integrada de unidades habitacionais, já que muitos projetos mais modernos liberaram espaços para novas construções. Em alguns casos essas habitações respeitaram uma distribuição de perfil capaz de ampliar a oferta de unidades populares, com sucesso de vendas. Afinal, quem não quer morar perto do time do coração?  

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Para finalizar, voltando à questão da logística de transporte do estádio, e ao ponto abordado que a experiência de matchday começa muito antes da chegada ao estádio, é importante entender que às vezes mesmo quando essa oferta não é a ideal no curto prazo, algumas ações podem ser implementadas pelos clubes para impactar o todo. Ou seja, se é impossível melhorar a oferta de transporte instantaneamente, muitas vezes impossível melhor sua qualidade. Mas como um clube de futebol pode influenciar a experiência de deslocamento de seus torcedores de casa ao estádio? Essa não é uma questão exclusivamente pública, fora do alcance de uma organização privada? Bem, essa é uma meia verdade. É certo que os clubes podem influenciar mais questões de transporte no entorno do estádio, a chamada last mile, do que no início do percurso (first mile) ou durante o transporte principal (ride), usando a terminologia do estudo da mobilidade urbana que segmenta a análise de um trajeto segundo o conceito de first last mile (FLM).  

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Através de uma abordagem proativa junto ao poder público e operadores modais, os clubes tem muito contribuir para melhorar a experiência de seus torcedores no deslocamento até o estádio. Além simplesmente da oferta de transporte, outros fatores como o tempo de deslocamento, integração multimodal e até mesmo o preço são vetores onde a atuação do clube pode exercer impacto positivo. E esse impacto, se não se traduzir em aumento na oferta imediata de transporte para o torcedor pode, mesmo assim, melhorar sua experiência de deslocamento e consequentemente o produto como um todo.  

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Finalmente, ainda em transporte, uma questão frequentemente citada é a oferta de vagas de estacionamento. Nesse aspecto da logística inclusive, ao contrário de outros, o Maracanã não possui oferta abundante. Aqui há três tendência importantes que precisam ser analisadas. A primeira é o consenso entre os especialistas que a demanda por vagas vai cair no futuro em especial pela crescente adoção do modelo de Transport as a Service (TaaS), que hoje se configura através dos chamados aplicativos de transporte como o Uber, por exemplo. A eventual adoção de frotas autônomas por essas plataformas deve ter potencial sobre a diferenciação do produto em nichos, e o impacto no preço do nicho popular. Algumas projeções indicam uma queda na demanda por vagas de estacionamento de até 87%, o que pede de quem planejar um estádio o correto entendimento dessa evolução, sob risco de direcionar espaço precioso para a ociosidade no futuro.  

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A segunda tendência está no dilema entre uma oferta inicial de vagas de estacionamento ajustada à demanda atual, porém maior que a demanda futura, ou uma oferta inicial abaixo da demanda atual, mas ajustada à demanda futura. Como se espera que haja uma variação negativa na demanda futura por vagas de estacionamento, e um estádio é uma operação que deve ser projetada com base em um cenário de longo prazo, resta ao planejador, escolher entre essas duas opções. 

Cada uma tem suas próprias vantagens e desvantagens. Oferta inicial maior pressupõe mais investimento e receita inicialmente, mas crescente ociosidade. Isso obrigaria a operação a já nascer com o viés flexível, prevendo a conversão futura de vagas em outros modelos de negócios.  

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A segunda tendência está ligada diretamente à terceira. Há uma crescente tendência de favorecer a caminhabilidade no last mile de estádios. Isso é, criar situações onde haja um estímulo natural a que o torcedor caminhe no trecho final. Quando é possível, inclusive, até mesmo excluir dessa etapa o acesso via veículos, restringindo ao pedestre. Com a introdução de novas soluções de mobilidade, a tendência é que cada vez mais pessoas caminhem em algum trecho até o estádio. Em especial se a estratégia é uma oferta de vagas menor que a demanda atual (mas ajustada à demanda futura), a solução frequentemente passará por bolsões de estacionamento. Assim, o last mile do estádio será dominado pelo pedestre. Nesse contexto, de maneira análoga ao que acontece em relação a outros modais, é fundamental que o estádio adote uma postura proativa no sentido de garantir a melhor experiência possível no trecho caminhado. Essa qualidade de um trajeto ser apropriado a caminhar é chamada de caminhabilidade (walkability), e é definida como a capacidade de um espaço público em permitir e estimular o ato da caminhada.  

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Concluindo, a localização de um estádio é fator crítico para seu sucesso. Porém é importante entender que essa é uma via de duas mãos. Estádios são impactados por sua localização no curto prazo, por outro lado impactam essa localização no longo. Na escolha de um local ideal, é fundamental entender essa dinâmica. Com relação especificamente à logística, é certo que o deslocamento para e do estádio é parte integrante do produto matchday. Embora os clubes tenham pouca autonomia para influenciar a qualidade desse deslocamento, ou até por isso, é essencial uma atitude cooperativa e proativa com os órgãos públicos e operadores modais, no sentido de entregar a melhor experiência possível ao torcedor, melhorando sua experiência total e em última análise o produto. Além disso, sendo um estádio de futebol uma operação pensada para o longo prazo, em décadas não anos, é importante que o diagnóstico de problemas e soluções seja feito considerando esse mesmo longo prazo. As demandas de hoje muitas vezes não serão as de amanhã, e qualquer diagnóstico feito em termos de logística de transporte deve considerar as características futuras de demanda, até mais que as presentes. 

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Mas o impacto de um estádio em sua área de entorno não se limita ao desenvolvimento econômico local. Em Londres, por exemplo, uma das cidades com maior número de estádios de futebol no mundo, ao longo dos últimos 20 anos muitos clubes construíram estádios novos ou reconstruíram seus estádios centenários. 

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